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A Cavalgada
A Cavalgada

A CAVALGADA

Por Michelle Paranhos 

 

Você já esteve numa cavalgada?

 

Ainda comum em cidades do interior, é praticamente inexistente nos centros urbanos.

 

Por isso, a maioria das pessoas nunca esteve em uma . Quando muito, conhece o significado um tanto óbvio fornecido pelo dicionário: um grupo de pessoas a cavalo.

 

A definição está longe de corresponder a realidade.

 

Na aparente balbúrdia do evento existe harmonia e até mesmo uma hierarquia sutil.

 

Não me refiro ao líder - ou ponteiro -, que guia o grupo pelos caminhos e abre cancelas. Tampouco falo do equitador da retaguarda, que cuida para ninguém se desgarrar do grupo e tem a função de fechar as porteiras após a passagem do grupo.

  

Nem menciono as trilhas ecológicas a percorrer, belíssimas, nem sobre origem dos eventos, como as Cavalgadas religiosas - a procissão equestre -, ou mesmo Cavalgadas de datas comemorativas e apenas de puro lazer.

 

Falo do início do festejo.

 

A concentração.

 

Voltava de uma banal ida ao mercado, sacolas em cada mão quando, na parte reta de acesso a minha rua, por uma ladeira íngreme, me vi em meio a tratadores, cavalos, amazonas e cavaleiros e, é claro, o público, que se acotovelava ignorando os riscos de levar um coice dos potros ou dos cavalos mais ariscos, cujos donos insistem em levar para a festa. Alguns ainda se precaveram, é verdade, colocando antolhos na cabeçada dos animais . Mas os medo os faz corcovear, mesmo assim.

 

Há cavalos fantasiados com esmero, vestindo máscaras e mantas de personagens da animação e até mesmo com bandeiras de times de futebol.

  

A Cavalgada da República transpira ares democráticos, onde a sociedade interiorana se reúne em peso para ver... e ser visto. Decido ficar um pouco mais. O sorvete chegará derretido, eu sei. Mas não perderei isso por nada.

   

Próximo ao palanque, lá onde ficam os animadores e as caixas de som convocando os cavaleiros participantes e o público em geral, desfilam os mais vaidosos cavaleiros e amazonas, deixando alguns reais na barraca oficial do evento onde compram chicotes, selas, canecas e camisas com o símbolo da caminhada, enquanto aguardam que o berrante anuncie o início do evento.

 

Com sorte, no lugar das caixas de som do trailer oficial - semelhantes a trio elétricos carnavalescos -, essa festa será animada por cantores sertanejos à caráter, usando chapéu de feltro, jeans colado, camisa de tecido xadrez, esporas que tilintam ao andar e botas que custam algumas centenas de reais...

 

O forró universitário, a música sertaneja e de sofrência se alternam, numa mistura de acordes, risadas, brindes, relincho e escavar de ferraduras impacientes sobre a terra batida.

 

O ambiente, a essa altura, já está impregnado com a mistura de suor, perfume caro e esterco.

 

Os donos da festa exibem arreios variados de acordo com as posses e prestígio de seus tutores.

 

Os primeiros a partir usarão bridão delicado sobre a boca sensível e crinas trançadas. Alguns deles com apenas quatro anos ainda, são potros rebeldes recém-domados e participam pela primeira vez da maratona equestre.

 

Os que virão logo atrás usarão freios cortantes sobre a língua e arreios simples, mas foram banhados e escovados para a festa.

 

E por fim as charretes e cabriolés trazendo famílias inteiras e vários pais orgulhosos dividindo a sela com pequenos cavaleiros.

  

Até os oito anos, os pequenos ginetes serão iniciados na arte da montaria, montando pelo lado esquerdo da sela, aprendendo a se manter firmes sobre a sela, marchando, trotando, e até arriscando pequenos galopes. Ao fim da jornada, descerão também pelo lado esquerdo com perninhas arqueadas e bumbum dolorido, até acostumar. Quase todos já andam sozinhos nas fazendas de origem, mas percorrer seis horas de trilha é lição para fortes de espírito e de vontade domada. Só após essa idade poderão montar sozinhos, desde que os responsáveis estejam entre os cavaleiros.

  

Por último, num meio galope, chegam os pôneis puxando pequeninas carroças, animais robustos a carregar sem esforço homens com o dobro de sua altura.

 

Um pouco afastado, graças a um resto de sanidade, um homem segura a rédea com apenas uma das mãos enquanto com a outra entorna o conteúdo de uma lata de cerveja goela abaixo. A música de sofrência fez estrago no juízo e no coração do peão.

 

O cavalo gira sobre as patas, rodeia, mas o peão se mantém sobre a sela, para espanto dos que observam a cena.

  

Logo mais será obrigado a retornar ao ponto de início, isso se não for expulso e ainda pagará pelo gasto com o transporte...

 

Dizem que a cavalgada começa com o avante do potreiro, marchando com garbo, seguido pelo festivo grupo.

 

Mas é ali, no Compasso de Espera, no aguardar do grito do berrante, onde tudo de fato acontece.

 

E enquanto ele não anunciar a partida, é aqui que vou ficar.

 

Michelle Louise Paranhos-21/11/18.